• Sobre o direito de como morrer

    31 de outubro, 2015

     

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    Passamos a vida tomando decisões e escolhas de como viver. Quando crianças nossos pais decidem por nós, na adolescência eles nos amparam e ajudam no turbilhão de dúvidas e questionamentos, na vida adulta dão aquele empurrão como podem e a vida segue,  a partir dai, quando tudo dá certo, seguimos com nossos próprios pés.
    A vida vai sendo dançada como que uma valsa com várias curvas em vários movimentos e tons, num salão com cores diversas, onde há hora de começar e terminar o baile, e cada um tem sua hora de sair. Muitas vezes só, outras acompanhado, às vezes mais cedo, outras no apagar das luzes felizes por ter dançado até o fim. 

    Sempre desde que lancei este site, minha tônica sempre foi postar temas sobre prevenção em saúde. Acredito nesses anos de clínica, que não são poucos, que a prevenção é a melhor, maior, mais barata, mais simples, mais fácil forma e mais eficaz de investimento que se pode fazer em saúde no mundo, tanto pessoalmente quanto pelos governos. Isso depende de educação e promoção de saúde desde a infância e por toda vida, claro.

     

    Excluindo-se as fatalidades, doenças genéticas, algumas poucas outras e os casos cirúrgicos, as grandes epidemias e doenças de maior morbimortalidade da atualidade a exemplo das doenças cardiovasculares, diabetes, obesidade,  câncer, e depressão, todas têm como uma das principais causas a má qualidade de vida que passa por sedentarismo, maus hábitos alimentares, stress, fumo, distúrbios do sono, e fatores ambientais. Quando não matam de forma súbita ou rápida, e ou em pouco tempo de evolução, o tratamento das mesmas é bastante complexo e caro. Envolvem  e necessitam equipes multidisciplinares para ter, quem sabe, com a colaboração, vontade e disciplina do paciente, um relativo controle, já que não existe cura.  E aí?

    Quando não matam, a  evolução dessas doenças pode se arrastar pela vida afora, sem falar nas que afloram em geral já depois dos 60 anos, como a Doença de Alzheimer e Parkinson e certos tipos de câncer.
    Essas doenças, pela idade em que ocorrem em algum membro da família, dependendo de como esta esteja estruturada, pode atrapalhar, afetar, apenas deixá-la triste, ou desestruturá-la por completo.
    Não raro, temos membros de várias idades nessas famílias. O neto que nasceu ou está em idade escolar, o adolescente, o da faculdade, o filho ou filhos lutando para manter a família, a esposa já aposentada ou separada do marido, enfim, cada um com sua vida e suas peculiaridades e problemas específicos. Uma série de conjunções familiares, sociais, econômicas, culturais e psíquicas existem simultaneamente  se apresentado de forma completamente diferente para o ser enfermo.
    Nesse ponto…
    A doença se agrava.
    A idade aumenta.
    A valsa parece chegar ao fim mas ainda não terminou….
    Muitas variáveis ainda podem acontecer aí!
    Quem está doente pode não estar lúcido, e a família toma as decisões por ele!…
    Certas ou não, aí vai depender das possibilidades, responsabilidade, carinho, consciência e amor de cada um, e não quero aqui fazer julgamento de valores.

    E se a pessoa estiver lúcida e puder resolver, querer optar por decidir o que quer fazer com a sua doença e discutir com seu médico esta ou aquela conduta médica?

     

    Sabemos que hoje nossos pacientes face ao avanço cada vez maior das mídias digitais, (estas ganham espaço no mundo inteiro para qualquer outro meio de comunicação), e ao Dr.Google, que apesar de nem sempre trazer informações confiáveis, informa, tem um conhecimento muito maior de tudo sobre saúde. Somos questionados por eles a todo tempo!
    Entra aí a ética médica, grandes discussões jurídicas e da classe.
    Também nem quero me alongar aqui, mas em outro post, sobre a questão dos inúmeros pacientes que ficam,  em Home-Cares em suas casas, por longos períodos.
    Quando são ricos, para citar um exemplo, o campeão Schumaker, em verdadeiros hospitais domésticos; quando pobres, entregue às moscas e ao cheiro de urina fétida, pois nem fraldas descartáveis podem comprar, num quartinho qualquer!
    Quando de classe média, em seus Home-Cares ou com seus ” cuidadores”, o que hoje se tornou no Brasil uma ” coisa” para não usar um adjetivo ou substantivo e ferir as raras pessoas idõneas da classe, e que observamos nas residências, não raro, a reclamação  por parte da família  da falta daquele relógio ou anel de estimação, ou até mesmo daquela nota de 100 reais que ficou em cima do criado mudo!

    E quando passam dias, mêses e até anos em C T I???!!!
    Até hoje a medicina não sabe, nenhum estudo baseado em evidência foi feito para comprovar se estes pacientes estão lúcidos ou não!
    Quem já entrou, pelo menos em uma visita num CTI, tem noção da quantidade e da agressividade de picadadas, cortes, talhos, tubos e entubos, sondas pela boca e pela uretra, acessos profundos venosos, aqui só para citar alguns dos procedimentos básicos que se faz diariamente num CTI. Tudo em nome da vida. Não podemos deixar aqui de citar aqueles casos, claro em que a passagem rápida por um CTI é fundamental e  necessária como num pós-operatório de uma cirurgia cardíaca por exemplo. Nem podemos deixar de  mencionar o esforço que vários hospitais estão fazendo para fazer o que se chama de “CTIs  humanizados”.
    Estou falando nos casos de doentes de prognóstico ruim cuja sobrevida sabemos como médicos ser curta, e que mesmo os colocando em CTI, fazendo intervenções quais quer que sejam como cirúrgicas, e mesmo que depois os coloquemos em casa em “Home-Cares”, eles não vão ter uma melhor qualidade de vida !!!!
    É nesse tipo de paciente ao qual me refiro que não raro encontramos na nossa pratica diária, e temos que nos deparar com outros colegas que tem suas condutas, que não são erradas, apesar de intervencionistas, e  temos que resolver  em equipe o que se deve fazer com o paciente. Muitas vezes  as opiniões  divergem. Mas o paciente É LÚCIDO, e tem o direito e quer optar e  opgaeyox
    E não existe no código de ética médica, nem nas normativas do CRM, NADA , que proíba isso. A VONTADE e o direito do paciente.

     

    Acho que, como médicos, por melhores técnicos que sejamos, por tudo que ao longo da vida aprendemos, por todos os  “Guide-lines”  em que nos baseamos e nos atualizamos na medicina baseada em evidências, e pelo juramento de Hipócrates que fizemos, ainda muito jovens, talvez sem saber nem o que estávamos ” jurando”, tudo isso tem que ser levado em conta nessa conduta, para de uma maneira humana e verdadeira informar a verdade ao nosso paciente. Mas ele também é parte no processo de escolha da tomada de decisão da conduta a ser tomada. Além de ser merecedor de saber toda a verdade sobre sua doença, claro,  o paciente tem todo o direito de  não querer se submeter a nenhum procedimento invasivo, e pode desejar por exemplo, terminar seus dias com a família em casa. Ele pode não querer ir para um CTI, ou fazer uma cirugia, enfim, de posse de sua lucidez, um paciente conhecendo com verdade a sua doença, tem todo o direito de fazer e participar da decisão do que fazer com ela. Até porque nada em medicina é matemático, e muitas vezes, somos surpreendidos com milagres de cura, não explicados pela medicina.

     

    Muitos colegas infelizmente a serviço de interesses  mercantilistas, quer sejam empresariais ou pessoais, vêem no paciente grave uma fonte de lucros infindável. Sabemos das altíssimas taxas de internações, diárias em CTI, custos com medicamentos hospitalares, e de  todo aparato tanto médico quanto de hotelaria! A medicina curativa, (e que nem sempre cura), é caríssima! Os hospitais de alta complexidade tem um custo altíssimo. Esses pacientes muitas vezes esperam meses e meses, apenas sua hora nas salas frias de um CTI, ou nos quartos de luz branca a sua hora final, muitas vezes, não por vontade própria.

     

    Nada deve ser mais respeitado do que a soberania de um paciente lúcido e de posse de suas funções cognitivas. Cabe a ele, em conjunto com a equipe médica e família, decidir conjuntamente  qual conduta vai se tomar diante uma situação que se sabe paliativa.
    Afinal, é o paciente, é ele quem tem o direito de querer e dizer,  já que pode, e chegou até aqui…como quer se despedir da valsa da vida.

     

     

    Lizanka Marinheiro – Phd, Md

    Endocrinologista – FIOCRUZ